Henrique já estava com 17 anos e
alguns meses e não pretendia se formar logo no ensino. Estudava em uma escola
nos arredores de sua morada. Era um aplicado estudante, filho único e foi
abandonado ainda muito novo. Sabia muito pouco sobre a data de seu nascimento,
muito pouco mesmo. Teve um único momento, pouco antes dos 17 anos, que
questionou à assistente social responsável pelo abrigo, sobre seu parentesco. A
única curiosidade era sobre os detalhes do dia de seu nascimento, do ato de
nascer, para ser mais exato. O evento nascer para ele era intrigante. Ao menos
o seu próprio nascimento. Queria mais informações sobre o evento nascer, mas
era uma odisseia e com prováveis irresolutas conclusões. Depois se esquecia dessa
inexplicável sensação. Os anos foram passando. Ficou, inclusive, muito bravo
por algum tempo, entre os 12 e 14 anos, mas nunca teve um comportamento
violento ou desrespeitoso, nem com os outros abrigados, até mesmo em relação ao
parentes que jamais conheceria. Resignou-se, mas ainda manteria guardado como
segredo por anos a curiosidade fatal.
Soube que após os primeiros dias
de outubro daquele ano, antes de se formar no ensino, o abrigo iria receber
algumas visitas de pretendentes a parentesco. Henrique, pela primeira vez, não
se inquietou. Lembrou rapidamente das várias vezes a cada ano e a cada mês
dessas visitas. Houve anos que se deprimia a ponto de passar dias sem se
alimentar direito, apesar do conforto ofertado pela cozinheira Cidinha. Ela
sempre preparava, fora do horário das refeições um sanduíche mais recheado com
frios e um copo de refresco, na tentativa de aliviá-lo. Mas Cidinha sabia que
esse alívio não viria. Ela acompanhou por anos, por vezes somente com o olhar
afetuoso, o completar dos 18 anos de garotas e garotos e que, poucas semanas
depois, iriam embora do abrigo. A maioria sem parentesco. Sozinhos. Ainda
abandonados.
No entanto, naquele dia, Cidinha
parecia diferente aos olhos de Henrique que notou pouco surpreso. Ao se
aproximar de Henrique lhe ofereceu dois sanduíches, que imediatamente
perguntou: Por que dois? Ela respondeu, juntamente com um olhar mais brando e
alegre: Coma um agora e guarde um para depois! Henrique respeitou a orientação,
recebendo também um afago no cabelo e um abraço demorado. O que aconteceu?
Segundos depois ainda se questionava surpreso quanto a atitude de Cidinha.
Manteve-se sem muitos esclarecimentos pelas próximas horas.
Em seguida, a assistente social convidou
Henrique para passear pelo pátio enquanto os outros abrigados corriam ansiosos por
todos os lados, enquanto os pretendentes a parentesco estavam chegando, ainda
em poucos números. Ela perguntou a Henrique se ele se lembrava do grande desejo
que possuía. Henrique respondeu que era saber os detalhes do dia do seu
nascimento. Ao elevar a mão no ombro de Henrique, continuou a fazer outras
perguntas que o levaram a ver por outro lado o real motivo de seu desejo. Ele
desejava, mais que tudo renascer, por fim. E como estava próximo de completar
os 18 anos e se graduar na escola, as pouquíssimas chances de ser recebido em
uma família era cada vez mais improváveis. A assistente social, então, pediu
que ele tentasse se lembrar de algumas pessoas queridas que ele havia conhecido
anos antes e que não poderiam ser nem a Cidinha e nem os outros funcionários e
abrigados. Henrique respondeu que era seu professor da escola que ele o
considerava muito inteligente. Era um homem responsável e cheio de valores. Ao
ouvir isso, a assistente social percebeu que imediatamente Henrique começou a se
empolgar a cada palavra que proferia ao se lembrar de seu professor. Henrique
até se animou ao recordar que o professor havia prometido uma surpresa, para o
momento próximo de sua colação de grau na escola, e, se desse tempo, a
promissora oferta lhe seria uma alegre descoberta.
Henrique complementou que não obtinha
mais informações sobre seu professor, mas que o via com muita estima. A
assistente social, após o término da fala de Henrique, alertou que faria uma
última pergunta, e esta deveria ser respondida com muita sinceridade: Qual o
seu maior medo (já que todos sabiam qual era o seu grande desejo)? E ele,
emocionado e com a voz embargada, sussurrou: que a sua família estivesse no
auditório no dia da colação de grau, antes dos 18 anos, comemorando o fim de um
período. E que depois da cerimônia todos fossem para casa. Que se sentisse
pertencente a um laço confortável. Que seu passado não o incomodaria mais,
sendo alegre com as pessoas que o receberam. Que os anos passados sem aquele
afeto diário de um parentesco fossem como um sonho e que poderia descansar
sabendo que no outro dia o café da manhã seria ao lado de alguém que estimava.
A assistente social percebera que
Henrique estava emocionado e resiliente quanto ao seu futuro. Paciência! Seus
olhos retratavam. Seu rosto demonstrava essa desolação, mas não se violentava. Ela
sabia que Henrique era um generoso garoto e que se tornaria um bondoso homem. O
afeto faltava, mas algo mudaria essa realidade de Henrique.
No final da tarde, Henrique foi
chamado pela secretária para ir à sala da assistente social. Henrique bateu à
porta e esperou. Para seu espanto, Cidinha abriu a porta já com os olhos
marejados de emoção. Henrique se espantou e ao olhar para a direção da mesa da assistente
social reconheceu, imediatamente, a presença de seu professor que há algumas
horas havia se recordado. O professor se aproximou, alcançou as mãos nos ombros
de Henrique e perguntou: Há anos eu tenho me esforçado para ser um homem melhor
e percebi que falta um detalhe, só um, e penso que você pode me ajudar.
Henrique, você pode ser meu filho? Henrique abraçou o professor e, derramando
lágrimas, balançou a cabeça afirmando o desejo e falou: Sim!
Em dezembro, todos os funcionários
do abrigo e o professor estavam no auditório comemorando a colação de grau de
Henrique, que radiante subiu ao palco para receber os aplausos e o diploma. Henrique
olha para o público e sorri radiante. Acena para o professor. Ao pretender descer
e abraça-lo, atentou-se aos lábios dele e leu algo parecido, como: Desculpe ter
demorado para ser seu pai... Foi então que Henrique, caminhando em direção a
escadaria do palco, sentiu-se mal. O sorriso foi desvanecendo. Os presentes
percebem que Henrique cai. O professor se espanta e corre em direção ao corpo
de Henrique, que já no chão, não responde mais.
Continua.