17 maio, 2016

Feliz aniversário

Esteve muito próximo ao fogão, enquanto sua avó preparava a sopa. Como sempre, já faziam ventos temperados em sua porta e por isso precisariam se aquecer. Tecia aos poucos, justamente porque ainda era muito infantil, cada vez mais admiração por ela, e por isso acreditou ser amor, por aquela senhora com lenço branco envolto na cabeça e que usava cotidianamente um vestido florido.
As mãos se tocavam e ele sabia, desde tenra vida, que ela era sim o calor de que ele mais precisava naquele dia, pelos dois considerado especial. Era uma comemoração, orgulhavam-se. Ela jamais se esqueceria, enquanto viva e ele afetuosamente esperaria o momento.
Ela estendeu a toalha de mesa e pediu que ele se acomodasse muito perto, para que a sopa não lhe ferisse. Apoiou-o, sem queixumes. Dispôs o prato e um copo vazios, ainda. Ele sorriu como sempre o fizera por sentir a proteção irradiada de sua avó. O aroma dos vegetais animava ainda mais os dois. Os pães já estavam dispostos para que seus braços curtos pudessem alcança-los. Ela estendeu outro copo para que ele bebesse água, imediatamente. Ele se regozijou. Como que em postura para prece, agradeceu à divindade sem que a avó o solicitasse, mesmo acompanhando. Ela serviu uma concha, ele logo apalpou o pão mais branquinho. Ela ajeitou o prato mais próximo à boca, ele assoprou, de modo quase adulto, o caldo já na colher. Ela sorriu como se quisesse nutri-lo com mais amor, além da sopa, ele ao máximo cuidado agradecia com apenas um olhar. Ela não se sentou. Ocupando ainda o estado de vigília, aguardou cuidadosamente o fim da refeição e ele consentiu em ajuda-la. Eram cúmplices. Ela encerrou a lavagem da louça, ele firme rente à pia. Ela retirou o lenço da cabeça enquanto ele voltava do banheiro com os dentes escovados. Ela se trocava enquanto ele retirava o cobertor e se dispunha para baixo do manto. Ela o beijou a testa e declarou: “Feliz aniversário, meu filho.” Ele torcendo a ponta do nariz e em comemoração pela lembrança, respondeu: “Obrigado vovó!” “Durma bem, meu querido!”, ela encerrou.

Durante toda essa passagem, nenhum som foi desconhecido. Nenhum olhar embaraçado. Pouco contraste por causa da iluminação modesta. Jamais ruídos de desatenção. Nada fosco o inacabado. Tudo amorosamente redondo.

Quando crianças, somos dispostos a viver como crianças sempre em aprendizado e nunca como crianças que já aprenderam e vivenciam ao menor afeto singelo. Esquecem-se de nutrir, nas crianças, o saber sobre a saudade de quem nos ofereceu os primeiros sinais de amor. Hoje, já homem, ele só desejaria aquele abraço, aquelas mãos e o olhar que, silenciosamente, acalmariam qualquer corpo da dor.

16 maio, 2016

Desconforto

Passamos a maior parte dos vinte anos reclamando. Como ainda não fiz quarenta, penso que os trinta não serão muito diferentes.
Há poucos anos, declarei em boa voz que não gostava de dormir. Para a maior parte das pessoas, não considerando aquelas que nem sequer ousaram levantar as pálpebras para me censurar, eu estava em devaneio, dizendo: “Ah, mas é você mesmo.” Ou: “Mas você também...” Ou, por fim: “Só você mesmo.”
Independente das formulações, a mensagem sempre é a mesma e absolutamente previsível: você não é normal, e se for, está delirando.

Quem se desconforta é o outro que está habituado a pensar que viverá para sempre. Quem se desconfortou, outrora, é porque percebeu que o finito é imprevisível e, somente, ele o é. Quem se desconfortará, poderá não ter mais instante intrigante para viver as circunstâncias. O que eu tenho a ver com o desconforto dessas pessoas? Tudo, eu sou tudo a ver.