02 maio, 2021

O melhor beijo

Desde pirralho envaidecido eu desejava conceituar o que sentia. Dediquei-me a leitura do dicionário. Pretensiosamente, escolhia os termos mais suntuosos, clássicos do idioma e pouco me intimidava com os elogios eloquentes destinados àquela peripécia. Tomou-me tempo e com o passar dos anos percebia que a correspondência entre a minha vontade e o escutar alheio em nada agradava profundamente as pessoas ao meu redor, apenas as atordoava num primeiro instante, depois as desenxabia.

Outro tempo se tornou realidade e alguém apareceu. Telepático, mas belo ao menos por fora. Comunicamos com pouca estratégia, ao menos da minha parte. De outro modo, independente, tornei-me sentimental novamente, sem a segurança que possuía anteriormente. Numa forma pouco distinta, acompanhei este alguém rumo a um futuro completamente indesejado para ambos, ao menos não expressamente dito. Encontrávamos e parece que até chegamos a acreditar à mesma era de que seria para sempre.

Certa vez o beijei. Na verdade, este alguém me beijou. Foi seu primeiro impulso depois de alguns comentários. Víamos íntimos e inexistia compromisso. Seguimos. Eu gostava, e depois descobri que apenas eu gostava, de nossos encontros. Mas, como tudo acaba não muito bem houve um fim para nós. Mal sabíamos, eu ainda sentimental, que era apenas um intervalo.

Em outra certa vez o encontrei. Nada muito natural, afinal tínhamos alguma coisa ainda em haver. Voltei-me para o depósito das sentimentalidades, encurtei discursos e o retorno amigável, fortunadamente, veio a nós. Eu me empolguei, mas havia muita declaração de amor por parte dos dois. Não poderia me furtar. As contingências ficaram confortáveis para este alguém e, mesmo envaidecido pelo retorno, afinal era o nosso primeiro, uma porção em mim ainda não estava muito clara, deixando certa liquidez nas percepções. Eu o procurava, o tocava, o sentia e, por fim, o beijava.

Aproximamos tão fortemente que os apertos passaram a ser constantes: corpo a corpo, face ao redor das bochechas, mordidas carinhosas e, por não menos, mais um beijo.

De repente, este alguém deixa de falar, tenta se afastar, passa a não me responder, ignora meus olhares, torna-se um vulto, foi se removendo da mente, fazia nenhuma falta e na intensidade de um último toque, encostamos os lábios. Novamente, por sua iniciativa, movimentou os lábios e eu gulosamente propus o contato das línguas. Imediatamente, senti alívio nas pálpebras, deixei de esperar o futuro, entreguei o corpo mais gentil ao dele, relaxei os ombros, depositei meu rosto mais inclinado e o melhor beijo que nos demos aconteceu, definitivamente.

Sem mais, abri os olhos, desenrolei das penas parte do lençol e voltei a repousar o rosto no travesseiro, caindo outra vez no sono.

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