28 outubro, 2018

Se eu pudesse


Se eu pudesse eu o abraçaria. Eu o deitaria em meu colo e contaria as mais humoradas histórias fantásticas da humanidade. Todas as mais fantásticas histórias porque eu não pretendia doar a ele o pouco, por mais intenso que seja o infinito da imaginação humana.
Se eu pudesse eu o beijaria as bochechas para que se sentisse mais meu e menos do nada. Afeto deveria ser linguagem entre humanos. Todas as línguas deveria se satisfazer com o afeto, por mais diversas que sejam as culturas.
Se eu pudesse eu o contemplaria. Já não basta o tempo que o universo lhe determinou para um fim e ainda a luta que tenho que travar contra o finito para que a memória sempre esteja frutífera? Não, não basta o menos.
Se eu pudesse eu o viveria. Para que sofrer sozinho se abraçar acalenta o corpo e desperta a alma para a vida?

A cor de Adão

Por pouco a mão divina não recobriu o barro com saliva distinta. Já deveria ser a sétima vez que o Criador tentava modelar a Criatura. Criatura de pouca substância, mas com forma bem aguda e delimitada. A medida deveria ser: a mínima não poderia superar a metade do comprimento do membro inferior e a máxima não ultrapassaria o dobro do membro superior. Entretanto, não queria o Criador deixar a natureza monótona e resolveu implementar exceções e casualidades nos nascimentos futuros.
"Já viu a cor do barro?", interpelou o arcanjo. "Não existe barro branco.", condescendeu o anjo. "E sobre qual peça Ele deverá se ocupar?", demonstrando receio."Rerum novarum.", arranjou o outro. "Devemos aguardar, Ele já se atrapalhou anteriormente."

31 agosto, 2018

O especialista

Parecia estar em mais um tempo de descobertas. Não era antigo demais para deixar de perceber os grandes detalhes estéticos humanos: as curvas; e tão pouco jovem o bastante para se esquivar na timidez da idade. Foi com uma lupa ocular, quase de nascença, que o fez ter um olhar de perito. Descobrir curvas humanas. As mais belas, todavia. Com o passar dos anos, aprimorou o foco e, como se gracejasse em conversa alheia, notou! Era demasiado observador e não era por curvas quaisquer: era pelas mais formosas, as que aquietavam-se num corpo ordenadamente... num corpo...
Antenado com as Artes, pousou sua atenção em quadros renascentistas e foi se debruçando, logo, em outros tantos de posteriores épocas. Da Vinci! Ah, Da Vinci! Como queria ter presenciado os diálogos que tivera com aquela mulher. Seu nome se parece com poema e sua face era a verdadeiro despropósito: seria o seu esplendor. Seria... é! Que curvas! Levemente davam vida àquela face. Uma demorada sombra nos lábios superiores levaram a criar uma sensação de paz. Qual sensação mais nobre repousaria em seus lábios?
Adiante, recuperou a concretude da vida. Esqueceu-se, porém de orar para a luz. Despreocupou-se com o contraste e... ZAP! Perdeu-se. Foram noites e madrugadas sem sonhos. Manhãs que inexistiam formas. Apenas abstrações. Retas. Losangos. Triângulos. Caducos. Vazios. E, certa vez, de repente... surge uma curva discreta, em um sorriso desavergonhado. Certeiro. Acertado. Dado a requintes de bom trato. De entortar o pescoço para admirar. Vejam só! É, então, ai que renasceu a cor, o brilho e uma luminosidade cujo contorno deve ficar gravado em mim para sempre.

13 junho, 2018

A vista

Mesmo que eu tenha essa repulsa por outrem, o mais verdadeiro asco pelo animal, ele sempre esteve presente em minha vida. É como a esperança, algo desafortunado que nos impede de o exercício da real felicidade, mesmo quando ela se compreende, apenas, como passageira.
Eu não permito aproximações minúsculas. Considero isso um desatino.

23 maio, 2018

Amado

Eu sei, bem como você também, que as imagens que porventura sobressaiam em algum intervalo do nosso dia-a-dia são sobre nossas memórias e não parecem menos árduas do que antes do distanciamento. Podemos seguir em frente com nossas escolhas em nossas vidas sem sentidos: ao menos tento aproximar você do meu suplício, e ainda iremos nos esbarrar, mesmo naquelas mais longínquas lembranças que ocupam o mais profundo de nossas mentes. Não haverá cobrança mais, pois prescreveu o tempo de nossa amizade: agora somos apenas memória. O distanciamento nos auxilia e, simultaneamente, nos perdoa, mesmo que seja apenas uma ilusão. Você e eu não fomos uma escolha, nós nos escolhemos. Eu e você não fomos apenas uma idealização de perfeita irmandade, eu pereci e você não se importou. Você e eu não fizemos devaneios, não houve oportunidade. Eu e você seremos apenas conhecidos num oceano de sofreguidão. Nós seremos somente passado. Temos, ao menos, uma cicatriz em comum: o medo de não sermos amados.